Estar imerso no mundo dos aromas, ainda que temporariamente, é mudar seu estado de consciência e despertar para um momento mais completo. A fragrância tem o poder instantâneo e invisível de invadir a consciência com “prazer puro”. O aroma nos alcança de maneiras que escapam da visão e da audição, mas estimulam a imaginação com toda a sua sensualidade, revelando mundos ocultos. (Mandy Aftel)
A quinze metros do arco-íris o sol é cheiroso. (Manoel de Barros)
segunda-feira, 6 de setembro de 2010
Cheiração beatífica
Horta é coisa boa de se cheirar. Estranho o desprezo com que tratamos o nariz. Os teólogos de outros tempos falavam da "visão beatífica de Deus". Mas nunca li, em nenhum deles, coisa alguma sobre "a cheiração beatífica de Deus". Como se fosse indigno que tivesse cheiros, que ele entrasse pelos nossos narizes adentro, por escuros canais até as origens mais primitivas do nosso corpo.
Pois, se eu pudesse, faria uma teologia inspirada na horta, e o meu Deus teria o cheiro das folhas do tomateiro depois de regadas, e também da hortelã, do manjericão, do orégano, do coentro.
Essa coisa indefinível, invisível, que entra fundo na nossa alma e daí se irradia para o corpo inteiro como uma onda embriagante, o cheiro é a aura erótica do objeto, sua presença dentro de nós, emanação mágica por meio da qual nós o possuimos. Quem cheira fundo - e para isso até fecha os olhos, porque o cheiro vai mais dentro que os olhos - está dizendo o quanto ama...
E fico pensando nessa coisa curiosa: que a horta só seja percebida como produtora de coisas boas para comer. Isso só pode ser devido a uma degeneração do nosso corpo, de sua imensa riqueza erótica, à monotonia canibalesca que só reconhce o comer como forma de apropriação do objeto.
Os cheiros moram na horta, e quem não se dá o trabalho de cultivá-la não pode ter a alegria de reconhecê-los.
Há pessoas que se reunem para ouvir música; outras pelo puro prazer do paladar. Mas ainda não se convidam pessoas para concertos e banquetes de perfumes. O mais próximo seria, talvez, convidá-las para passear pela nossa horta; e ali nos deliciar com a perplexidade na medida em que lhes oferecemos folhinhas para cheirar e lhes perguntamos: "Sabe o que é isto? Veja como é gostoso..."
Rubem Alves (O Quarto do Mistério - Papiro - 1999)
www.rubemalves.com.br
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Seria uma delícia............ concertos e banquetes de perfumes.
ResponderExcluirBeijooooooo
Verdade Estela....O cheirinho do alecrim, cebolinha,manjericão...Saudades de casa!!!
ResponderExcluirPara mim,não existe nada mais melhor do que sentir o cheiro dos temperos durante a preparação de uma receita.Obrigada pela postagem....
Um bom feriado!!!
Emilinha
O grande mestre Rubem alves, sabe muito bem exprimir em palavras os devaneios da alma humana.
ResponderExcluirQuando o tenho à vista não perco o prazer de sentí-lo no aroma de suas palavras.
Achei uma linda idéia...concertos e banquetes de perfumes. Lindo post.Linda e cheirosa semana p/ ti.
Bjos,
Calu